15 fevereiro 2006

Alceu, perfeito

Geralmente eu coloco um trecho interessante de um artigo e o link para o conteúdo completo. Mas este texto do Alceu, publicado no site do Diego Casagrande, está tão bom que tenho que colocar a íntegra:

Nas sombras de hoje
por Alceu Garcia, advogado

O historiador Otto Ranke dizia que todas as gerações estão eqüidistantes de Deus. Dito de outra forma, cada geração tem o ônus de preservar a civilização construída por seus antepassados e, se possível, aperfeiçoá-la. Não é uma tarefa fácil. Os valores fundamentais que sustentam a cultura podem facilmente ser perdidos e o resultado são as crises que abalam os pilares da civilização. O nosso tempo está marcado por uma crise desse tipo, muito grave e profunda. Mesmo quando tudo parece calmo na superfície, violentas correntes ocultas estão se entrechocando e podem emergir a qualquer momento, causando sérios danos.

Poucas pessoas estão capacitadas para compreender a nossa crise cultural. Uma delas era o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945), autor de Nas Sombras do Amanhã (1935), um livro clássico sobre o tema. Uma cultura saudável, enuncia Huizinga, apóia-se sobre três elementos: equilíbrio harmônico entre valores espirituais e materiais, um ideal comum de sociedade e o domínio sobre a natureza. A crise contemporânea decorre da atrofia dos valores espirituais em contraste com o completo predomínio de um materialismo crasso. A esse desequilíbrio soma-se a fragmentação da noção de vida em sociedade, prevalecendo visões parciais e contraditórias acerca de valores e ideais, ou mesmo correntes que negam a existência mesma desses valores, tais como o niilismo e o relativismo. A perda do sentido de perspectiva e hierarquia de valores acaba afetando o elemento da cultura moderna que ainda funciona, o domínio da natureza, que tende a girar sobre o próprio eixo sem finalidade, na ausência de orientação ética.

O fulcro da crise é o declínio do espírito crítico e do juízo, fruto do conflito entre a ordem do conhecimento (inteligência) e a ordem do ser (existência), resultando no repúdio ao princípio intelectual e na renúncia expressa à compreensão do significado da verdade. O conhecimento se reduz ao progresso técnico-científico que, privado do guiamento de princípios superiores, acaba subjugado pelo poder político e desvirtuado por imposturas ideológicas. Estas emanam das várias correntes anti-intelectuais como o marxismo, o existencialismo, Nietzsche, Sorel, Bergson e outros que, com suas derivações e entrecruzamentos, continuam ocupando o cenário das idéias ainda hoje.

Huizinga observa que a moral cristã perdeu sua validade absoluta e cogente para a elite cultural, sob o ataque de filosofias amoralistas como as de Marx e Nietzsche, de doutrinas científicas com pretensões metafísicas ilegítimas como o darwinismo e a psicanálise e de movimentos estético-sentimentais dedicados a zombar das antigas virtudes como coisa superada e a erigir a transgressão como um fim em si mesmo. As elites disseminam essas doutrinas entre o povo em geral, espalhando confusão e incerteza. A dissolução da idéia, clássica e cristã, de uma ordem ética objetiva e universal acarreta a dissociação entre moral e Estado, o qual se coloca fora e acima de qualquer preceito ético. A violência estatal foge então a qualquer limite e controle, perpetrando iniquidades sem precedentes.

O declínio de uma cultura ocorre quando valores superiores são substituídos por inferiores. Essa tendência ao barbarismo se verifica em todos os aspectos da vida moderna. A arte sacrifica a compreensão no altar da existência instintiva, dispensando a função intelectual de sua tarefa interpretativa. Abandona as formas moldadas pelo real e degenera no culto da originalidade vanguardista, supostamente criadora de suas próprias formas. O estilo, a fisionomia estética da cultura, se corrompe no contexto do irracionalismo geral. O puerilismo, a imaturidade e a mediocridade se refletem cada vez mais nos costumes, nos comportamentos e nos gostos das elites e das massas. À acumulação inesgotável de conhecimento corresponde uma crescente escassez de sabedoria, de critério e de discernimento para julgar esse conhecimento.

Huizinga não é um reacionário. Ele não propõe o retorno a um passado idealizado como solução para a crise, até porque não há retorno possível; os navios foram queimados. Se solução há, ela passa necessariamente por uma catarse purificadora da alma que detenha de algum modo a degeneração ética e intelectual e resgate a consciência das verdades metafísicas no nível da filosofia clássica e cristã. Na época em que escreveu o livro, o autor depositava parte de suas esperanças no internacionalismo da Liga das Nações, desde que sua fonte inspiradora fosse a concepção da ordem internacional do filósofo Hugo Grotius, fundada na teoria política clássica, na ética cristã e no código de honra da cavalaria medieval. Infelizmente, contudo, este era um beco sem saída. Longe de se inspirar em Grotius, a ONU, sucessora da Liga das Nações, é uma síntese das causas e efeitos da crise cultural enumerados por Huizinga. Por este caminho não vamos a lugar nenhum.