Durante cinquenta anos, a obra de Steiner perseguiu uma pergunta curial: como foi possível a uma civilização que se julgava intelectualmente avançada descer ao abismo do horror no século XX? A pergunta faz sentido sobretudo para quem sempre depositou na "cultura" uma fé profundamente optimista. E, no entanto, é possível encontrar exemplos de homens cultos que, depois de uma sonata de Schubert ou de umas páginas de Flaubert, acordavam no dia seguinte e iam gasear judeus com entusiasmo burocrático.
Se a cultura não nos torna mais "humanos", para que serve a cultura, afinal?
Disse que a pergunta é inevitável para um humanista porque ela questiona directamente a estrutura intelectual do Ocidente, isto é, a ideia de que o conhecimento é virtude. Mas a pergunta será ainda mais premente num humanista judeu: para Steiner, a identidade judaica não se define por um qualquer apelo à religião, ou à "raça" (termo equívoco, eu sei). O "judeu" é aquele que mantém com a palavra escrita uma relação vital. Foi essa relação que lhe permitiu viver, e sobreviver, ao longo de séculos de perseguições.
Resta, assim, uma última e terrível hipótese: a cultura, fonte de "humanização", pode também revelar-se um instrumento de desumanização". Essa hipótese é levantada por Steiner num breve ensaio que a Gradiva publicou entre nós. Intitula-se "O Silêncio dos Livros" e, depois de uma viagem histórica sobre a leitura e os seus inimigos (humanos, físicos, bélicos, tecnológicos), Steiner levanta esse paradoxo: o contacto habitual com a intensidade das grandes obras pode tornar os homens insensíveis à banal realidade. Num outro livro, Steiner define esse paradoxo como "o paradoxo de Cordélia", em referência directa à personagem do bardo: será que existe no mundo um grito tão pungente como aquele que Lear lança à sua filha tão amada?
Às vezes, é preferível não responder a certas questões. Como diria um velho filósofo inglês, encontrar a verdade não significa que ela será confortável.
11 maio 2008
JP Coutinho
Uma das grandes cabeças da atualidade (parece até panfleto promocional):